Intervenção de Carlos da Silva Costa na Conferência do MUS

 | 27.11.2018 12:33

Intervenção de abertura

Boa tarde,

É para mim um grande prazer dar as boas vindas a todos.

A Conferência de hoje marca a última visita que Danièle Nouy nos faz enquanto Chair do Supervisory Board.

Serve, assim, como um excelente momento de reflexão sobre aquilo que já atingimos e aquilo que ainda falta fazer no processo da construção da União Bancária, iniciado em 2012.

Os desafios da criação do Mecanismo Único de Supervisão

Com as reformas internacionais do setor financeiro que se seguiram à crise, foram envidados esforços para desenvolver um quadro regulamentar harmonizado com requisitos mais rigorosos em termos de capital, liquidez e capacidade (privada) de absorção de perdas para proteger os contribuintes.

Na União Europeia, introduziu-se, ainda, o conjunto único de regras (Single Rulebook) e o Sistema Europeu de Supervisão Financeira.

Em junho de 2012, o ex-Governador do Banco de França, Christian Noyer, e eu próprio, na mesma data, apelámos à criação de uma União Bancária dotada de um mecanismo de supervisão comum. Em 4 novembro de 2014, a entrada em funcionamento do Mecanismo Único de Supervisão (MUS) consubstanciou o repto que lançámos anos antes.

É, pois, com particular satisfação que quatro anos volvidos vejo um sistema em funcionamento pleno, justificando-se, no momento de passagem de testemunho da Chair do Supervisory Board, um agradecimento a Danièle Nouy por todo o trabalho que desenvolveu ao longo dos últimos anos e pelo seu contributo decisivo para o sucesso deste projeto.

Danièle Nouy tem insistido ao longo destes quatro anos na necessidade de o MUS ser “tough and fair”, palavras que muitos dos presentes reconhecerão. A sua perseverança foi essencial ao estabelecimento da identidade e credibilidade que hoje todos reconhecemos ao MUS.

Hoje, o relacionamento com o MUS faz parte do dia-a-dia do sistema bancário europeu, mas há quatro anos, Danièle Nouy e a sua equipa enfrentaram a tarefa hercúlea de criar de raiz uma nova instituição europeia – diria, um quase milagre.

Mais ainda quando, ao mesmo tempo que se recrutavam e formavam as novas equipas de supervisão, se efetuava uma Avaliação Completa (Comprehensive Assessment) aos maiores bancos europeus – que iriam ser sujeitos à supervisão do MUS –, consubstanciada numa análise da qualidade dos ativos e na realização de testes de esforço.

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Hoje pode parecer fácil, mas há quatro anos o desafio era colossal e sem paralelo.

Além dos desafios logísticos, a criação do MUS enfrentou desafios organizacionais:

  • ao nível de relacionamento e criação de elos de confiança com as autoridades de supervisão nacionais, e
  • ao nível de implementação da legislação que estava a ser produzida e implementada ao mesmo tempo, designadamente relacionada com requisitos prudenciais; poderes, instrumentos e exercício de supervisão; e o enquadramento para a recuperação e resolução de instituições de crédito.

A primeira prioridade do MUS foi o restabelecimento da confiança no sistema bancário europeu profundamente abalado com as várias vagas de crises que a Europa enfrentou. Tal tem expressão num conjunto de métricas relevantes desde o Comprehensive Assessment, das quais destacaria:

  • o aumento dos rácios de capital: o rácio CET1 aumentou 2,6 pontos percentuais entre o fim de 2014 e o segundo trimestre de 2018, e
  • a redução dos créditos não produtivos (non performing loans, NPLs): de 958 mil milhões de euros para 657 mil milhões de euros (entre o fim de 2014 e o segundo trimestre de 2018), o que corresponde a um rácio médio de NPL de 4,4%.

Conforme referia recentemente o Presidente Draghi, a supervisão europeia trouxe um conjunto de benefícios importantes quando comparada com o sistema fragmentado de supervisores nacionais ao:

  1. harmonizar as práticas de supervisão,
  2. adotar uma perspetiva de todo o sistema ao monitorizar e mitigar os riscos, e
  3. reduzir a fragmentação do quadro operacional de supervisão.

Neste contexto, é de ressalvar um conjunto de iniciativas do MUS ao longo dos últimos anos relacionadas com:

  1. a harmonização do processo de análise e avaliação para fins de supervisão (Supervisory Review and Evaluation Process – SREP),
  2. as avaliações da adequação e idoneidade, e
  3. os trabalhos relacionados com os créditos não produtivos.

As iniciativas que identifiquei são apenas um subconjunto de um vasto trabalho já efetuado pelo MUS.

Um trabalho manifestamente positivo pelo rigor acrescido e maior grau de intrusão e pela melhoria da governação que impôs, ao focar-se numa cultura de risco transversal, que questiona sistematicamente a sustentabilidade da banca no presente e no futuro em termos de procedimentos e de modelo de negócio.

Os desafios futuros

Embora possamos afirmar que na área do euro estamos hoje mais bem equipados para dar resposta a crises futuras, subsistem ainda riscos devido à incompletude da União Bancária. Hoje, decisões de supervisão e resolução são na sua maioria europeias, enquanto o garante último da estabilidade financeira permanece nacional, com ferramentas limitadas para agir.

Como referia recentemente Yves Mersch, “What matters is that liability and control are aligned. When taxpayers’ money is involved at European level, a European control function is called for.”

Assim, é fundamental que, no prazo mais curto possível, se estabeleça um mecanismo europeu de garantia de depósitos, uma backstop para o Fundo Único de Resolução (FUR) e capacidade de fornecimento de liquidez em resolução.

No período transitório, o apetrechamento das autoridades europeias e nacionais para garantir a estabilidade dos sistemas financeiros nacionais, regionais e europeu são um fator crítico e decisivo da aceitação pública do processo de integração europeia e de legitimação democrática.

Apesar de ser sempre difícil antecipar de onde vão surgir novos elementos de perturbação da estabilidade, alguns começam a perfilar-se no horizonte, seja no shadow banking, nas áreas do branqueamento de capitais, ou no mundo ainda desregulado das FinTechs e do desenvolvimento digital. O facto de alguns grandes bancos ‘tradicionais’, sujeitos a regulação intensa, valerem hoje menos em bolsa do que algumas FinTechs dá uma ideia das novas potenciais fontes de risco.

Acresce que o digital não é o único grande desafio imediato. Permanece na agenda a gestão dos créditos não produtivos em balanço e o cumprimento de requisitos regulatórios muito mais exigentes (designadamente em sede de MREL).

Além disso, o desaparecimento da fragmentação no mercado financeiro europeu comporta um conjunto de desafios que não podemos ignorar.

O debate europeu atual centra-se na maior harmonização de regras através da remoção de opções e discricionariedade nacional que ainda subsiste, bem como no recurso a Regulamentos Comunitários de aplicação direta em vez de Diretivas que requerem transposição nacional.

Tal harmonização é vista como necessária à integração financeira transfronteiriça, potenciadora de maior partilha de risco no espaço europeu. A concomitante aceleração de movimentos de concentração bancária transfronteiriça será neste contexto uma realidade a prazo.

Esse processo de concentração será tão mais rápido quanto menos preparados estiverem os bancos para concorrer no espaço europeu.

Ao nível nacional, importará avaliar quais as necessidades de investimento e onde apostar para concorrer num mercado em que a delimitação da fronteira nacional é cada vez menos relevante, tendo como pano de fundo a discussão sobre a localização dos centros de decisão.

Estes desafios encontram expressão nas prioridades que o candidato a Chair do Supervisory Board, Andrea Enria, identificou, aquando da sua audição no Parlamento Europeu na semana passada. Prioridades essas que são um continuar do trabalho de Danièle Nouy, e estão em linha com as prioridades identificadas pelo MUS para 2019.

Com o benefício da experiência dos últimos anos, sugeriria como matéria de reflexão adicional:

  • a necessidade de densificar o processo decisório do MUS, e
  • a necessidade de se separar claramente supervisão de regulação.

Permitam-me densificar um pouco estas ideias.

Em primeiro lugar, é necessário densificar o processo decisório do MUS para assegurar a ownership partilhada dos problemas e das decisões, por exemplo através da constituição de Comités intermédios com o devido escalar para o Supervisory Board.

Em segundo lugar, é imperioso separar claramente supervisão de regulação e, adicionalmente, garantir a aplicação do princípio ‘uma responsabilidade de estabilidade financeira, uma responsabilidade de regulação e uma responsabilidade de supervisão’.

A separação das funções de regulação das funções de supervisão é uma condição necessária da legitimação política do padrão de regulação assegurando a sua correspondência com a preferência revelada em termos de organização da tomada de risco e do papel do sistema financeiro no processo de desenvolvimento sustentado; e é, por isso, uma garantia da independência da função de supervisão face ao poder político.

A coincidência entre os territórios de regulação e supervisão constitui uma garantia de observância do princípio da responsabilidade central pela estabilidade financeira. Neste contexto é necessário avaliar:

  1. de que forma poderemos assegurar e salvaguardar esse princípio básico ao nível da União Bancária, e
  2. que mecanismos de coordenação e convergência entre as autoridades territoriais de regulação e supervisão poderemos estabelecer entre, por um lado, a União Bancária e, por outro lado, os restantes Estados Membros da União Europeia.

Além disso, o MUS dever-se-á abster de ser uma a instância de configuração de mercado, não se sobrepondo aos desenvolvimentos que resultam da interação dos agentes económicos num contexto de concorrência leal.

Concluiria agradecendo a Danièle Nouy pela sua vinda a Lisboa, fazendo votos de uma proveitosa discussão no decurso desta tarde.

Muito obrigado a todos.

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